19/3/2016,
sábado
Foto: Vila
de Santa Rosa, no Peru: a travessia de barco a motor desde Tabatinga (AM) leva
pouco mais de quatro minutos
Em
Tabatinga e Benjamin Constant (AM)
Flávio Ilha
A
vulnerabilidade da tríplice divisa, na confluência entre Brasil, Peru e
Colômbia, para a fiscalização do tráfico humano realmente impressiona. A ponto
de ser chamada de fronteira "viva" ou "aberta": do porto de
Tabatinga (AM)
para a localidade peruana de Santa Rosa são apenas quatro minutos em linha reta
de "pek-pek" –o motorzinho de popa que tornou os deslocamentos pelos
rios Solimões e Amazonas muito mais rápidos e incontroláveis.
Entre
Benjamin Constant (AM), no lado brasileiro, e Islândia, no Peru, a distância é
ainda menor: cerca de 50 metros pela foz do rio Javari, que podem ser cruzados
a remo. Ou dois minutos em barco regular a motor até o centro da vila, por R$
4. Em ambos os casos, a fiscalização aduaneira não existe. Para cruzar a
fronteira com os barcos que saem das estações regulares de Tabatinga e Benjamin
Constant, basta informar o primeiro nome. O serviço de transporte não exige
documentos e nem faz perguntas sobre o parentesco de quem está viajando. Na
divisa de Tabatinga com Letícia, separadas apenas por uma rua, o controle é
mais rigoroso, mas apenas na principal rota de passagem entre Brasil e Colômbia
–pela avenida da Amizade. Nas ruas adjacentes, o trânsito é livre. E fluente.
"Na
fronteira o problema é mais grave, porque as pessoas simplesmente desaparecem,
nunca mais são localizadas. E porque as polícias estão empenhadas em combater o
tráfico de drogas, que gera visibilidade. Os dois crimes, porém, são
absolutamente complementares", pondera a coordenadora da seccional do
Amazonas da rede Um Grito Pela Vida, Izalene Tiene. A rede, ligada à CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), atua de forma preventiva e não
acompanha denúncias de tráfico, embora Izalene relate pelo menos meia dúzia de
ocorrências recentes de raptos em Tabatinga e em cidades vizinhas, como São
Paulo de Olivença e Atalaia do Norte. Todas com as mesmas características:
adolescentes ou mulheres jovens e vulneráveis, de famílias pobres, e com pais
ou irmãos ligados ao tráfico de drogas.
As
rotas também são conhecidas, embora continuem sem fiscalização alguma. A mais
comum envolve a saída forçada de pessoas pela cidade peruana de Caballococha, a
duas horas de lancha da tríplice fronteira; dali, de avião ou de barco, os
traficantes seguem até Iquitos –principal cidade da Amazônia peruana– e têm
acesso a linhas aéreas comerciais para todo o mundo. Quando chegam até lá,
torna-se muito difícil recuperar alguém.
Outro
caminho, menos usado devido ao controle mais rígido, é chegar a Manaus pelas
rotas comerciais ou alternativas. Mas a viagem dura pelo menos
três dias, dependendo do tipo de embarcação, e passa por regiões povoadas, onde
o risco de ser descoberto é maior. Chegando
àcapital, porém, o trânsito é livre, especialmente para a Guiana e o Suriname
–dois destinos muito usados pelos traficantes para exploração sexual.
Segundo
a ONU, o tráfico humano rendeu US$ 31,6 bilhões no mundo todo para os
comerciantes ilegais em 2015 –sendo a atividade criminosa que mais cresceu em
âmbito global. Em comunicado com data de 9 de fevereiro deste ano, o
secretário-geral Ban Ki-moon alerta que o tráfico de pessoas já afeta
populações de 152 nacionalidades em 124 países.
Segundo
o dirigente, é necessária uma cooperação internacional mais significativa e
financiamento adequado para que sejam tomadas medidas eficazes contra os
traficantes. "Nenhuma região está imune", disse o secretário-geral da
ONU. Dados do Europol (Serviço Europeu de Polícia) apontam que cerca de 10 mil
crianças vulneráveis que viajam para a Europa em rotas de migração política
desapareceram, lembrou Ban Ki-moon. "Algumas podem estar se escondendo por
medo. Mas outras são mantidas na escuridão."
No
Brasil, a SDH (Secretaria dos Direitos Humanos) da Presidência da República
estima que o número de vítimas de tráfico de pessoas no país cresce de forma
assustadora, mas os dados são mínimos. Foram computados 32 casos em 2011,
segundo o serviço Disque 100 –estatística que pulou para 309 notificações
apenas dois anos depois (2013). Nos três anos de intervalo do levantamento, o
número de vítimas chegou a 511. Proporcionalmente, Mato
Grosso e
Amazonas lideram as notificações com respectivamente um caso para cada grupo de
21 mil e 25 mil habitantes. São Paulo, que tem o maior número absoluto de casos
notificados (51 em 2013), registrou uma ocorrência para cada grupo de 86 mil
pessoas.
O
governo reconhece que há subnotificação, especialmente em Estados do norte do
país. Amapá e Roraima, por exemplo, não
registram nenhum caso entre 2011 e 2013 –embora figurem como rota de exploração
por organismos internacionais. O diretor do Departamento de Justiça do
Ministério da Justiça, Davi Pires, credita a dificuldade com a consolidação das
informações à diversidade de órgãos públicos envolvidos no combate ao tráfico
de pessoas e à baixa tipificação criminal da legislação brasileira em relação
ao tema.
O
tráfico de pessoas é condenado como uma violação dos direitos humanos e é
regido pelo Protocolo de Palermo (2000) –ratificado pelo Brasil por meio do
decreto 5.017. "Apesar de sermos signatários do Protocolo de Palermo desde
2004, a tipificação do crime de tráfico de pessoas existe apenas no plano
teórico. Do ponto de vista penal não há objetividade", argumenta o
diretor. Pires reconhece que o problema "é mais sério do que as
estatísticas afirmam", mas alega que o marco legal do país tende a se
tornar "mais claro" com a votação de substitutivo do senador Ricardo
Ferraço (PSDB-ES). O projeto foi resultado de duas CPIs –uma na Câmara, outra
no Senado– sobre o tema. Entre outras medidas, o projeto altera o Código Penal
e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para aumentar as penas de quem
traficar seres humanos. Também nega visto a estrangeiro que tenha sido
condenado em outro país pelo crime. Hoje, a pena máxima para quem pratica
tráfico de pessoas é de seis anos de reclusão.
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